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Professor, Músico, Audiófilo, Cientista Político, Jornalista, Escritor de 1968.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

Novos Escritores

Aí vão três crônicas dessa nova e brilhante escritora, a Carla Casagrande!

Sempre Morro na Praia

                        Chegar a ter um videocassete em casa era mais que um desejo, uma obsessão, era o máximo em tecnologia associada ao prazer; o cinema particular, sem os inconvenientes de tomar um ônibus, pagar o preço dos ingressos e, nem ao menos, poder pedir para voltarem a fita um pouquinho quando se perdeu algum trecho. Poder sair direto da cozinha e apertar o botãozinho mágico do play, sem ter que passar longamente pela frente do espelho para retocar o cabelo ou a maquiagem para sair.

                        Já estava decidido: minha vida seria dividida em a,V. e d.V. Antes do vídeo, tanto fez como tanto faz, mas depois dele, seria necessário reorganizar meu cotidiano, dedicar o maior tempo que pudesse a esse meu novo esporte, correr quilômetros de fita, pra frente e pra trás - privilegiar de fato a sétima arte.

                        A verdade é que esse aparelhinho maravilhoso já havia se tornado algo comum na casa da maioria das pessoas com as quais me relaciono, e, eis que a defasagem em relação ao cinema me constrangeu por inúmeras vezes. Quantas delas usei aquele truque barato de fingir que estava com a boca cheia para não ter que dizer: “não, esse eu não vi” e “esse também não”. Dessa forma minha lista, já astronômica, aumentava a cada conversa de bar ou encontro com amigos. Minha vontade de discutir as obras cinematográficas com as pessoas me frustrava invariavelmente. Tentava, então, resolver um pouco do sentimento de exclusão, comentando a respeito dos livros que lia. A verdade é que isso não bastava: eu queria aquela maravilhosa combinação de imagem e som, aquelas histórias fantásticas com seus inícios, meios e fins ao sabor de cada diretor.

                        Então fez-se o cinema. Chegou o videocassete lá em casa e aí não sabia qual filme escolher. Não queria perder tempo, queria ver os melhores. Mas a realidade se sobrepõe ao sonho e a correria cotidiana deixa apenas uma pequena e desprivilegiada parcela da noite para tal fim, e então, por melhor que seja o filme, por mais empolgante, a certa altura a fala vai deixando de fazer sentido, as palavras do enredo me hipnotizavam e eu entrava num túnel mágico do qual só saio no dia seguinte.

                        O tão esperado momento de comentar o filme, de analisar o cenário, de comparar as obras de um mesmo diretor, a atuação de cada ator em diferentes filmes, caía, agora, na invariável e inevitável frase que concluía a conversa: “Só não vi o final. 

Vida de Marsupial

                        O material pode variar. O mesmo pode acontecer com o estilo, a cor, a textura, o tamanho. O que não se altera muito, é o número de mulheres adeptas ao uso de bolsa.         É um objeto indispensável. Praticamenter um anexo ao corpo delas. Aos homens, basta-lhe a carteira, e quanto muito um pentinho de bolso, para quando o vento vencer o “Gumex” que cola seus fiapos - a mulher precisa de muito mais.

                        Para saídas curtas como a feira, basta uma niqueleira; já a ida ao supermercado, fará uso de uma carteira, onde estará contido: o dinheiro, talão de cheques, cartões de crédito, calendário, um santinho de sua devoção, fotos dos filhos e marido, um selo de carta, esquecido; fotografia 3 x 4, extrato bancário, nota fiscal.

                        Jornadas mais longas exigem bolsas maiores. O eterno encargo de gerar e garantir a vida, obriga as mulheres a carregarem tantos objetos, quanto possam ser úteis em qualquer acaso ou imprevisto. Dali, como de uma cartola de mágico, é possível tirar praticamente qualquer coisa: uma gripe lhe deu seus primeiros sinais no ônibus, lencinhos de papel; tem também caneta, agendinha de telefones, bloquinho para anotações, incenso para um cheirinho bom, vários papéis dobrados. Lista de compras, receita de óculos que depende de um via-crucis às óticas do centro da cidade; para ferimentos leves, Band-aid, para dor de cabeça, Cibalena, para sol alto, filtro solar, mãos ásperas “Maciex” do Avon.

                        Espelho, batom, chaves, escova de dentes, um pouco de papel higiênico, balas, carteira de identidade, jornal do dia e agenda. Se a bolsa for pequena, isso será tudo. Entretanto, um pouco antes de sair, ainda precisará acomodar sua marmita e o tapa-pó. Mas se for grande, será muito bom, pois além de todos esses objetos, vai mais o livro que está lendoi, um casaquinho, caso esfrie, uma fralda para limpar a baba do filho, o casaquinho dele, o bichinho de pelúcia preferido, uma sombrinha pequena, dobrável, etc.

                        E assim, muitos são os motivos que movem as mulheres a anexarem bolsas em si mesmas – seja por charme ou por imenso senso de responsabilidade; por necessidade, ou puro diletantismo, a mulher vai vivendo, ao longo dos tempos, sua vida eterna vida de canguru.  

Não Te Perguntei Nada

                        Em uma empresa decadente, numa sala deprimente, trabalhavam algumas mulheres. Dividíamos as canetas e também os talheres. O fato é que quiséssemos ou não, nossa vizinha estava sempre, aproximadamente, dois palmos de distância. Às vezes suportávamos bem, outras, sentíamos repugnância. A mesma que experimentam aqueles que se obrigam a dividir uma jaula escura, essa e outras torturas.

                        Naquela sala minúscula, conviviam diariamente, cinco criaturas: a chefe do setor, com olhos de mosca varejeira, que contraía núpcias; uma Escoteira, “sempre alerta”, um office-boy, filho abandonado, que vasculhava o interior do Rio Grande do Sul procurando por sua mãe. Tornou-se, no futuro, um detetive – “Detetive Escorpião – às suas ordens”. Também tínhamos no grupo a amante de um figurão e uma jovem maluca com síndrome de morrer solteirona. Mas nem tudo estava perdido. Habitava entre nós a sempre bela Marli. Ah, esta sim, admirada por todos, tamanha simpatia. Mulher de meia-idade, charmosa, cabelos longos, castanhos, e ondeados. Marli costumava discursar suave e delicadamente sobre o rompimento dos preconceitos e sobre o direito de cada um ser como quer, enfim...

                        Não posso perder a oportunidade de registrar a respeito da “tia”, a senhora que fazia o cafezinho. Quando um dia fui à cozinha, vi um caldeirão fervendo, que transbordava uma espuma densa, amarela, derramando do grande bule brigava com o fogo do bico do imenso fogão industrial e que brotava insistente, como que nunca acabasse. Perguntei a ela o que era aquele preparado, e ela respondeu economizando preocupação, “é o cafezinho de vocês”.

                        Tão difícil quanto tomar o café da tia, foi disfarçar o choque que causou o novo visual de Marli. De suas melenas maravilhosas, ondeadas e longas, restaram apenas alguns fios curtos e encrespados, com um permanente tão nervoso, que dava a impressão de que a pobre estava dormindo no banco da praça há algumas semanas. Buscava com meu olho a suavidade que a imagem de nossa musa nos oferecia, mas encontrava apenas aquilo, que mais parecia uma peruca engruvinhada e ressequida, e então não me contive: “Ah, Marli, que coisa horrível! Por que tu fez isso?”

                   A lição veio no ato. Sua delicadeza não me poupou, e disse-me suavemente: “Olha, não te perguntei nada”. Imediatamente recobrei a razão – era a mais pura verdade. Como se não bastasse, discorreu, sempre pedagógica e revolucionariamente, a respeito do direito individual das pessoas fazerem o que querem com sua imagem, e sobre a batalha que travam com elas mesmas para conseguirem provocar mudanças pessoais.

            Aproveitando a lição, pedimos à tia do cafezinho, com igual delicadeza, que ela pelo menos não fervesse mais o café com tanto açúcar, escondendo-lhe a repugnância que ele nos causava, diante da caudalosidade grossa do líquido. A verdade é que não se teve a mesma sorte. Marli mudara, eu mudara, só faltava convencer a tia.   

                                 

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