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Professor, Músico, Audiófilo, Cientista Político, Jornalista, Escritor de 1968.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

A Falta Que Ele Nos Faz

Carla Casagrande e Lawrence David

 

                        Antes de ler o livro que o guru lhe deu, você tem que escrever o seu. Mas e se eu dissesse que ele escreveu o que eu queria escrever, disse o que eu queria ter dito, cantou o que eu gostaria de cantar? Mas pagou o preço que eu não queria pagar! Se comprometeu tão seriamente em ser uma Mosca na Sopa que acabou tomando para si este papel, até em sua vida pessoal. Não conseguiu detetizar suas angústias que o mataram precocemente. A metamorfose parece ter sido sua tônica. Pensou e falou sobre quase tudo na vida, e o gênio, que não se adaptava, oscilava entre quereres e fugas constantes.

Encarnou o espírito da rebeldia desde cedo, o que lhe custou muito caro. Em seu disco de 1987, já doente, dois anos antes de sua morte, Raul declararia, em No No Song, traduzida por ele como Não Quero Mais Andar na Contramão, que não desejava mais dar uma de doidão, afinal passou boa parte de sua vida fazendo isso. Aí foi para a Clínica Tobias, curtir as boletas institucionais, receber uns Ploft Plufst 25 e dormir quase em paz. Infelizmente não adiantou muito.

Caracterizou-se por ser um garoto diferente. Em plena Bahia, onde o Rock sempre teve fama de maldito, era fã incondicional de Elvis Presley, Little Richard e Chuck Berry. Ler foi um de seus vícios desde criança: formou-se em Filosofia. Idealista, vivenciava o estrelato a tal ponto, que se considerava o próprio Rock, dizendo ser James Dean, um autêntico rebelde com muita causa. Andava de topete e jaqueta de couro e lia Aristóteles e Cervantes. No mínimo excêntrico naquele contexto.

Enquanto a Bossa Nova e a Jovem Guarda vinham com tudo e com razão, com seus temas descomprometidos, Raul gravava Raulzito e os Panteras. Um disco que falava de Amor, mas com uma profundidade e poesia incomuns para a época. Em Por quê?  Pra Quê? Os Panteras propõem uma discussão agnóstica. Já despontava sua tendência metamórfica quando não aceitava definições fechadas, nem verdades absolutas. Na melhor versão em português de Lucy In The Sky With Diamonds, Raulzito propõe uma volta a infância, ao mesmo tempo que já parecia sentir o peso de uma maturidade precoce na qual se permitia sonhar ainda com um mundo melhor, desde que não fosse necessário se acordar para que isso ocorresse.

                        Quando seu ídolo, John Lennon declarou que o sonho havia acabado, Raul não quis aceitar. Refletindo, escreveria em Cachorro-Urubu, “Todo o jornal que eu leio/ me diz que a gente já era/ que já não é mais primavera/ baby, a gente ainda nem começou.”. Em 1975, Tente Outra Vez reedita suas muitas tentativas e desistências. A ilusão romântica de Raul, de que o mundo poderia ser mudado com a suas músicas e que para isso bastava ser sincero e desejar profundo, demonstrava que era um homem de boa vontade, que sacudiu o universo daqueles que sabem que é de batalhas que se vive a vida. Mas, ao final, sem encontrar uma solução para o dilema, preferia ir morar em outro planeta. Em S.O.S. desistiu de pedir ajuda aos homens, suplicando aos alienígenas. “Seu moço, do disco voador, me leve com você, pra onde você for”. Conforme seu estado de desilusão, qualquer lugar era melhor do que aqui. Em As Minas do Rei Salomão chega a declarar, “Do passado me esqueci/ No presente eu me perdi/ Se chamarem, diga que eu saí”.

Raulzito era um contestador incontesti. Embora muitos tivessem dito que se vendeu ao Sistema, aceitando participar do especial infantil da emissora líder da audiência, conhecida pela impecabilidade das produções, dividindo o espaço com artistas “certinhos”, sabia da importância de sua mensagem àquele público que assistiria ao Plunct-Plact-Zum. E que ninguém venha dizer que a canção Carimbador Maluco seja propriamente uma adesão à censura ou ao carimbismo burocrático. Como em um conto de fadas, o perverso Carimbador percebe que tinha inveja dos viajantes do espaço e, por fim, deseja-lhes uma boa viagem, meninos. Boa viagem!

Outro polêmico episódio foi sua aparição no programa do apresentador mais popular e demagógico do Brasil. Chegando ao camarim, o possuidor do “sorriso franco e puro para um filme de terror” deu-lhe uma bronca, chamando-o de imoral por estar com o peito nu. Sua indumentária na ocasião era uma calça muito justa, acompanhada de botas cano longo e uma capa feita por sua mulher à época, Edith, com motivos celestes (estrelas, sóis e luas). Raul e o referido senhor, já no camarim, iniciaram uma discussão e foram aos tapas. Sua mãe ao recordar o fato de ter sido acusado de imoralidade, sabiamente observou: “... Bem onde, hein? Porque hoje esse programa mostra tanta porcaria e mulher nua.”

Apressado, vigiado, Raul corria da Ditadura. Foi seqüestrado e torturado, pelos canibais que comem cabeça de gente que pensa. Em Metrô Linha 743 três homens o prendem com pistolas nas mãos querendo saber o que estava pensando para avaliar o preço de sua cabeça: viu seu corpo sem ela pela primeira e última vez, um cérebro vivo à vinagrete, um prato raro. Encapuzado, amedrontado não se entregou: que seja, mas eu nunca fui tiete. Esta canção tem estreitas relações com a música Conserve seu Medo, em que Raul recomenda que “Esteja atento ao rumo da História/ Mantenha em segredo, mas mantenha viva/ Sua paranóia”.

Sua ingenuidade e espontaneísmo sempre o colocaram em risco. Encheu-se de euforia quando chamado pelo governo militar, na época sob o comando do General Geisel, acreditando que queriam realmente discutir as idéias alternativas. O que de fato estava acontecendo era uma intensa investigação sobre “essa tal sociedade alternativa”, supondo tratar-se de uma conspiração, um movimento revolucionário contra o governo, encabeçadas pela dupla Raul Seixas e Paulo Coelho. Pode-se atribuir a este episódio, que desencadeou em buscas ilegais em seus apartamentos, prisão, seqüestro e exílio de Raul, a lenda de que a canção Sociedade Alternativa revelava um pacto com o demônio. Preferiu dizer que tinha parte com este, ao invés de ser confundido com um guerrilheiro revolucionário. Mas, não escapou dos “choques no saco, literalmente”.

Raul foi uma dessas figuras brasileiras que o tempo não apaga. Seu legado atravessou gerações e sua mensagem não perdeu o sentido. Ao contrário, vê-se que profetizou o Cambalache no Brasil do início do século XXI, ao fazer a versão brasileira da canção do argentino Enrique Santos Discépolo, escrita em 1935, dizendo que o mundo foi e será uma porcaria eu já sei (...) e em 2000 também. E aí estamos. Trotes terroristas já haviam sido preditos por ele. Em DDI, alerta: pode ser um trote do diabo que vai baixar por aí! Tendo “baixado” por aqui, através de uma eleição no mínimo questionável, o comandante dos EUA brinca de forte-apache, aliado ao emissário da Rainha, na tentativa de manutenção do poderio anglo-saxônico e capitalista, sobrepujando a humanidade e seus gritos lúcidos de protesto ao genocídio.

Quanto ao futuro de nosso país, seria uma idéia original alugar o Brasil? Os norte-americanos já tinham pensado nisso há muito tempo, mas ninguém tinha tido a coragem de revelar. Que quintal seria melhor que a Amazônia? Para as elites, que aluguel mais rentável que todo o território nacional brasileiro? E ainda com vista para o Mar! E por que não adotar o dólar como moeda, já que ele paga o nosso mingau? Essas palavras lembram o acordo proposto pelos EUA para a ALCA?

Sentimos saudade do Maluco Beleza. Um homem capaz de entrar em um bar só de sunga e reclamar do frio que fazia; que ficava horas batendo papos intermináveis com um mendigo que “não falava coisa com coisa”; que certa vez se passou pelo padre que celebraria a união de um casal: quando o verdadeiro chegou, o nomeou coroinha e depois o exorcizou com água benta porque não parava mais de tocar o sino; um sujeito que, em Nova Yorque se passava por americano: não reconheceu Rita Lee aplicando-lhe uma cantada, “Hi, love, my name is Roger’, e ela, “Raul, você é bem cara de pau mesmo, hein? Vou contar tudo pra sua mulher!”, e caíram na gargalhada. Em dias de tão pouca substância e tanta massificação, tamanha irreverência faz muita falta. Raulzito é um baluarte da resistência sem ter perdido a ternura jamais.

 

Nossos sinceros e especiais agradecimentos aos colaboradores

Susi Elene Pankowski Rosa (Maluquete Beleza) e

Rafael Escher (Rafaelzito) pela inestimável contribuição.

 

Carla Casagrande - Bibliotecária

Lawrence David - Historiador e Professor de Ensino Fundamental Médio

 

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