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Professor, Músico, Audiófilo, Cientista Político, Jornalista, Escritor de 1968.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Ninguém Ouviu

Ele estudava o dia inteiro, não pensava em outra coisa senão estudar. Deixou de ver a namorada, os amigos, só entrava no Orkut depois das 10 da noite, quando não podia mais tocar – depois das insistentes reclamações dos vizinhos que ameaçavam chamar a polícia.
Mas estava difícil de conseguir trabalho. Os espaços para saxofonistas eram escassos. Alguns bons instrumentistas que conheceu tinham largado tudo, feito concursos públicos em diferentes áreas ou passaram a trabalhos menos intelectuais. Ele ainda não era uma dos melhores. Por isso precisava estudar. Sabia que só a música servia.
Sempre que ia começar a tocar (de manhã cedo, às oito em ponto) pensava em como tinha ido parar ali, naquela condição de músico profissional. De quando tinha seis ou sete anos e seu pai havia comprado um disco dos Beatles, o “Revolver”. Quando escutou pela primeira vez aquela bolacha teve a sensação de que o mundo havia se esfacelado. Bem à sua frente, naquela capa em preto e branco com desenhos muito loucos misturados com fotos e várias réplicas dos próprios fab four em diferentes personalidades. Ali o mundo se abriu pra ele.

Está concentrado. Sua respiração está ritmada, lenta, segura. Coloca uma paleta nova no instrumento e fecha os olhos, pois, agora, terá que tocar todas as canções que sabe. Elas começam meio arrastadas, mas lá pela terceira música, o ritmo começa a imperar. Procura seguir a batida de seu coração e imprimir um andamento mediano e intermitente. Nada de fugir pras fusas, fica aí, ô, nas colcheias.
Uma hora depois ele já está lendo algo novo, mais difícil do que o de costume, exige uma grande variação de notas, entre o extremo agudo e os graves retumbantes. Ao fim da primeira sessão, que não durou mais do que 45 minutos, está exausto. Resolve dar uma saidinha. Vai até o bar da esquina e bebe uma cerveja bem gelada. Fica com calor, mas menos tenso. Volta pro estúdio (que construiu dentro de seu próprio quarto com eucatex e caixa de ovo) e começa de novo, agora tentando o finalzinho daquela prosopopéia que não acabava nunca.
Lá pela uma, ele podia dizer que sabia de cor e que podia tocar sem o auxílio da partitura. Poderia então interpretar como queria aquela coisa desmiolada que seu amigo virtuose havia composto. À tarde resolveu fazer outra coisa. Decidiu que ia falar com Anita, pois não agüentava mais ficar sem toca-la. Talvez fosse por isso que não estava rendendo tanto. Ela não estava em casa, ou não quis vê-lo. Ele tocou, tocou ... e tocou aquela campainha, mas não havia ninguém em casa.
Ficou meio ansioso e seu coração disparou. Vou voltar a estudar, pensou. Ali eu me encontro melhor. Ali sou mais eu. Pensou nos Beatles. Pensou em Anita. Pensou no show de noite. Tava difícil de conseguir trabalho.

Quando a banda já tocava há uma hora, ele estava ficando empolgado com sua própria técnica. Evoluía, constantemente. Tinha um garçom que adorava os seus solos e já havia puxado papo nos intervalos sobre saxofonistas de jazz. Mencionou alguns que ele gostava, principalmente o John Coltrane. Bah, eu adoro aquele arranjo de metais em got to get you into my life do Revolver.
Lá pelas tantas, depois de uma hora, fez um solo, surpreendente, no meio daquele sambão dos anos 70. Que pena que seu amigo tinha ido buscar cigarros. Não viu. Ninguém mais viu.
O barulho e a conversalhada eram tamanhos àquela altura que o nível de atenção do público ao espetáculo era mínimo. Ninguém ouviu. Só ele ouviu uma melodia que compusera ali no ato, improvisando sobre aquela seqüência de acordes tão batida e ensaiada.
Foi pra casa triste e feliz. Não se arrependia de nada do que estava fazendo, a não ser, quem sabe, por Anita de quem ele gostava tanto. Sua solidão ainda o entristecia, não sabia onde ia parar. Era muito jovem e incerto. Quem sabe o que vai acontecer? Talvez ele não passe de um musico de baile, ou dependente de um generoso dono de bar que lhe pagasse um bom cachê por apresentação. Ia seguindo naquela incerteza, sem saber onde vai dar. Só se assegurava de um princípio em sua vida. Amava a música mais do que tudo.

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